segunda-feira, 23 de julho de 2012


A FLAUTA E O SABIÁ
 
Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma ária.
Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.
— De que te ris? indaga o pássaro.
E a flauta em resposta:
— Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?
— E tu quem és? ainda que mal pergunte.
— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Lê os clássicos.
— Muito prazer em conhecer... Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá se foi. Dize-me: que fazes tu?
— Eu canto.
— O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, não houvessem escravizado se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.
— Que eu cante?!...
— Pois não te aprece justo o meu pedido?
— Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.
— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.
— Isso agora não é possível.
— Não é possível! por quê?
— Não está cá o artista.
— Que artista?
— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.
— Ah! é assim?
— Pois como há de ser?
— Então, minha amiga modéstia à parte vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorrem o favor de alguém; não se movem se os não amparam; não cantam se lhes não dão gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas... cantam nos paços e nas catedrais... pois venha daí um dueto comigo.
E, ironicamente, a toda voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no estojo de veludo... moita.
Faltava-lhe o sopro.
(Coelho Neto)

Postado por Marisa Alverga

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