REMINISCÊNCIA
E as recordações me vêm todas de uma vez! E o sofrimento se acumula, se arraiga no coração e nada o faz desgarrar-se e aplacar a dor. Já faz tanto tempo! Ou não? O que são vinte e nove anos quando apenas uma eternidade nos separa?
Blasfemei, sim. Disse coisas que ainda hoje me horrorizam. Disse que Deus não prestava, que não era misericordioso, que não me amava.
Se me arrependi? Claro que sim. Pedi perdão publicamente, da mesma maneira que O ofendi. Afinal, quem sou eu para discutir os planos de Deus?
Durante dez anos fui diariamente ao Cemitério. Sentava num túmulo frio, numa laje sem calor e lhe contava o que acontecia no mundo. Se estava muito abalada com algum acontecimento, sentia-me confortada com o seu silêncio.
Tudo quanto me contassem de você, eu acreditava. Você era inteligente, criativo, eclético. Estudava, brincava, cantava, escrevia poesia, dançava, assistia à TV, jogava bola, tudo ao mesmo tempo. Às vezes eu dizia: fica quieto, menino, só um minutinho, sem sequer imaginar que um dia você iria ficar quieto para sempre!
Certa vez você pediu para levá-lo à Escola e eu respondi que a escola ficava só a alguns metros de casa e não fazia sentido ir levá-lo. Você já tinha dez anos, estava bem crescidinho para precisar da minha companhia para ir à Escola e aí você me contou que
brigara com Mago, um menino duas vezes maior do que você e ele havia dito que pegaria você no caminho da Escola. Ora, não seja tolo, eu lhe disse. Vá com Jesus.
Você saiu, mas voltou pouco tempo depois e me disse: Mãe, eu vou com Jesus, Mago aparece, Jesus dá no pé e eu me lasco. Não pensei duas vezes. Levantei-me e fui levá-lo à Escola. Mago, felizmente, não apareceu.
Um dia, morreu um vizinho nosso. À noite, saí para trabalhar e quando voltei havia gente na calçada, mais precisamente na porta da casa da minha amiga que havia perdido o marido e todo mundo reclamava de alguma coisa ou de alguém e me acerquei para me inteirar do ocorrido.
Não sei bem, me diziam, mas parece que alguém pregou um susto à pobrezinha e ela quase morre.
Eu nada disse, mas desconfiei de quem era a autoria e perguntei:
- Você sabe alguma coisa sobre isso?
- Olhe, mãe, ela estava tão triste que resolvi alegrá-la. Cobri-me com um lençol, subi pé ante pé a escadaria, agarrei-a pela cintura e gritei: Voltei. Ah, mãe, pra quê! Ela gritou tanto que a rua se encheu de gente, mas a essa altura eu já estava em casa. Deixei-o de castigo por uma semana.
Tudo no mundo a gente diz: “Morri”, “morro”... Na verdade a gente nem sabe o que significa. Só quem morre são os outros, a gente vai viver eternamente. É o que se pensa.
Outra vez cheguei em casa e a rua estava em polvorosa. A vizinha, danada da vida, reclamava com você, e, naturalmente, quis saber o que acontecera.
- Foi Geraldinho que jogou uma bola de ping-pong da minha filha, no esgoto.
- E aí, meu filho?
- Mãe, ela estava chorando porque a bola caiu no esgoto e eu, como um perfeito cavalheiro, enfiei o braço no esgoto e retirei-a. A mãe chegou e ela me acusou de querer roubar-lhe a bola e aí, não tive dúvida, joguei-a de volta no esgoto.
Eu nada disse, porque teria feito, exatamente, a mesma coisa.
Um dia você me pediu para ajudar a duas mulheres que moravam no caminho da sua Escola e argumentava que eram pobres e estavam tão velhinhas que a cara já estava toda rebocada. Não entendi o que quis dizer e no dia seguinte acompanhei-o para saber do que precisavam e descobri que o “rebocado” queria dizer engelhado. Achei graça e ajudei-as como pude. O seu coração era maior do que você. No Colégio onde estudava – e onde deu tanto trabalho -, fundou um jornalzinho, mas, por alguma razão não pode continuá-lo e decidi ajudá-lo e o seu jornal existe até hoje, vinte e cinco anos depois. E quer saber? O Brasil inteiro o conhece e alguns outros países, como os Estados Unidos, Portugal, França, Espanha, Bósnia, Japão. Nenhum de nós dois esperava por isso, não é mesmo?
Quantas vezes fui chamada ao Colégio? Você chegava em casa e dizia: Fui suspenso. De novo? O que foi desta vez? E você contava. Na maioria das vezes, não tinha razão, mas, algumas vezes, quem não tinha razão era o Colégio. (Tanto, que certa vez, uma Freira lhe escreveu pedindo perdão pelas injustiças que cometera com você) . Quer ver?
- Fui suspenso. Uma semana. A Irmã exige a sua presença.
- Tudo bem, mas você vai comigo. Antes, me conte o que aconteceu.
- Era recreio e resolvi estudar junto com alguns colegas e a Irmã me flagrou com um giz, escrevendo no Quadro. Disse que eu estava estragando o material do Colégio e por isso fui suspenso.
- E os outros alunos?
- A suspensão foi só para mim.
Você não mentia. Sempre me disse a verdade, acontecesse o que acontecesse, por isso não havia razão para duvidar do que me contava. Peguei-o pela mão, a raiva me dominando e entrei na primeira Livraria que encontrei.
- Tem giz? Quantas caixas?
- Cinqüenta caixas, mais ou menos.
- Coloque na mala do carro.
- Tudo?
- Tudo, sim.
Rumamos para o Colégio e coloquei tudo em cima do balcão e fui taxativa: Aí está o pagamento do pedaço de giz que ele gastou. Agora, cancele a matrícula dele. Onde já se viu, por causa de um pedaço de giz, um aluno ser punido com cinco dias de suspensão?
Aquieta daqui, arreda dali, desculpas foram pedidas e a suspensão foi retirada, mas ficaram com o giz.
Dez em comportamento, você nunca tirou, mas era inteligente e aprendia com rapidez. Muito estudioso não era, isso é verdade, mas, s.m.j., não era motivo para perseguição por parte de alguns professores, dos quais eu guardo mágoa até hoje.
Uma noite você me contou que determinado Professor havia dito que por mais que estudasse não seria aprovado na matéria dele e aconteceu que você foi reprovado na dita matéria. Precisava de uma nota quatro para ser aprovado na recuperação. Não fui falar com o Professor e deixei-o de castigo até que realizasse a prova e você levou por capricho e decorou o livro, literalmente, da capa à contra-capa e eu mesma me dei ao trabalho de inquiri-lo sobre o assunto e você sabia tudo sobre a matéria.
No dia da prova deixei-o no Colégio e fui trabalhar, recomendando-lhe que logo que terminasse o teste você me contasse o resultado.
No trabalho, passei mal e fui levada à enfermaria para tomar soro. Estava cochilando quando você chegou. Havia lágrimas nos seus olhos e logo compreendi o que acontecera.
- Foi reprovado? Quais foram as perguntas? O que você errou?
- Eu não errei. Acertei todas as respostas, mas o Professor riu e me disse: Não prometi que você não seria aprovado na minha matéria? Pois é, você precisava de quatro e tirou três e meio.
Enlouqueci. Chamei a enfermeira e pedi-lhe que tirasse o soro do meu braço, mas ela se recusou e eu mesma o arranquei. Peguei a chave do carro e fui com você ao Colégio.
Encontrei o Professor na sala, corrigindo as provas e pedi para ver a sua e ele, todo empoado, me respondeu que não mostrava. Você estava reprovado e ponto final.
Discutimos e eu lhe disse que iria às últimas conseqüências, mas haveria de ver a sua prova. Nem sei o que quis dizer com “últimas conseqüências”, mas a zoada foi tão grande que acorreram não só todos os professores, mas até a Irmã Superiora.
Contei-lhes o que estava acontecendo. Nunca procurei Colégio para pedir nota para meus filhos, mas injustiça, isto eu não admitiria e o Professor, arrotando grandeza: Tudo bem, tudo bem, vou lhe dar uma nota quatro e ele estará aprovado.
- Mas, de jeito nenhum. Quero ver a prova e se estiver faltando uma vírgula, pode reprová-lo, mas você vai lhe dar a nota que merecer.
E ele, danado da vida, mostrou a prova e como não havia uma só vírgula fora do lugar, deu-lhe a nota máxima: 10!
Voltei ao Posto Médico, deitei-me na cama e chamei a Enfermeira: Coloque o soro, minha filha.
Outra vez, você chegou em casa, com a estória tão minha conhecida: estou suspenso. Meu Deus do Céu, o que foi agora? E você:
- Foi uma brincadeira. As meninas estavam fazendo ginástica e eu joguei uma cobra de brinquedo e ainda tem menina correndo...
Você não tinha razão e além de acatar a suspensão, ainda apliquei-lhe um castigo em casa.
Às vezes você me dizia: A senhora me defende na rua, mas me castiga em casa. Era isso mesmo, eu o aplaudia quando você acertava, mas punia-o quando merecia. É assim o amor.
Quando você completou treze anos, junto com o seu presente eu lhe escrevi uma carta e você me respondeu. Mantivemos essa correspondência por três anos, mas muito antes disso eu já lhe escrevia e a primeira vez você tinha quatro anos. Eu lhe dei um velocípede de
presente e lhe falei sobre os perigos das estradas, chamando-lhe a atenção sobre direção perigosa, sinais de trânsito, essas coisas.
Aos três anos de idade você foi para a Escola. Já sabia ler e escrevia umas coisinhas, porque em casa estudávamos juntos, mas, por mais que eu lhe dissesse que na Escola era para ficar sentadinho, você não conseguia e logo cedo começaram os enredos e um dia você chegou em casa chorando e me contou que ficou de castigo, sem lanchar, porque não conseguia ficar quietinho como a Professora queria. Não gostei. Como é que se podia castigar um cristão com três anos de idade, privando-o do lanche? Você nem tomava café em casa, pelo simples prazer de lanchar na escola. Que ficasse sem recreio, vá lá que seja, mas sem lanchar?
Aproveitando a oportunidade eu lhe falei sobre a vida, dizendo-lhe que o mundo está cheio de injustiças e a gente tem que aprender a conviver com o bem e o mal. As pessoas lutam para conquistar um lugar ao sol, sem se preocupar com a esteira de lágrimas que espalham ao seu redor. Você é muito novinho e ainda não compreende o mundo em que vive, mas aqui vai um conselho: Não chore por besteira. Uma professora incompreensível não merece as suas lágrimas. Você é feliz porque eu o amo. Você é feliz porque mesmo tendo nascido numa família pobre, nunca lhe faltou o que comer. Pense, meu filho, naquelas crianças que não têm pão para saciar-lhes a fome. Não têm um teto para lhes abrigar da chuva e do sol. Não têm um cobertor para lhe agasalhar o corpo, uma mãe para lhes contar histórias e lhe acalentar o sono. Não têm uma professora, mesmo injusta, porque não podem pagar um Colégio. Veja, meu filho, como você é feliz. Por que chorar? Nunca mais quero ver lágrimas nos seus olhos.
Aos dois anos de idade você arranjou um amigo e me deixou muito assustada porque só você o via. Ele se chamava Jocombo. Que nome esquisito! Ele passou a viver conosco e nos acompanhava a todos os lugares. Um dia Jocombo caiu e quebrou o braço. Deus sabe como foi difícil engessar o braço de alguém que só existia na sua imaginação, mas eu o fiz.
Você estava com quatro anos e fomos à rua fazer compras e um garotinho pediu-me uma esmola, mas eu estava apressada e continuei o meu caminho, mas você me puxou pela mão e me pediu dinheiro emprestado para dar ao menino e me pagaria com o dinheiro do seu cofre. E em casa eu lhe disse:
- Sabe, meu filho, fiquei feliz com a sua ação, preocupado com a miséria humana. Você há de encontrar pela vida afora muitos meninos como aquele, vivendo de migalhas. Migalhas de pão, migalhas de carinho, migalhas de amor. Nunca desperdice a oportunidade de fazer o bem. “Quem dá aos pobres empresta a Deus” e quando Ele nos devolve é sempre com acréscimo. Divida o seu pão e nunca faltará comida na sua mesa. Quem sabe aquele menino tem um pai desempregado, uma mãe doente! Qual será o seu futuro? Dificilmente será um doutor. A sociedade que o marginaliza, transformá-lo-á, com certeza, num delinqüente e, a tudo indiferente, seguirá o seu caminho, como se não fosse responsável pelas misérias humanas.
De repente comecei a chamá-lo de Zezé, por causa do “Meu Pé de Laranja Lima”, o livro de José Mauro Vasconcelos. Só não lhe falei do Mangaratiba, o trem assassino, que matando Manuel Valadares, matou o coração de Zezé e a sua infância.
Certa vez levei-o ao Cemitério, no Dia de Finados. Triste lei, até os mortos têm o seu dia e eu lhe disse:
- Sabe, meu filho, aqui é a Mansão dos Mortos, para onde todos iremos um dia, em busca de outras plagas. É um lugar de respeito. Não o profanes com o riso dos que não compreendem a grandeza de Deus. Aqui se dorme o sono dos escolhidos, não há distinção de cor, de credo ou de partido político. Aqui repousarão o doutor e o carpinteiro, o pobre, o rico, o ladrão e o assassino, o plebeu e o nobre. São todos iguais perante Deus e serão julgados no mesmo Tribunal. Não sabemos o que nos espera no outro lado, mas supomos que na morada de Deus só há paz e amor e estaremos livres da maldade do mundo, da calúnia, da maledicência, da inveja. Na esperança de uma vida eterna, há a certeza da ressurreição.
Quando completou cinco anos, levei-o à Cadeia Pública. É que eu havia dado um curso de Relações Humanas para os presidiários e no encerramento organizei uma festinha com bolo confeitado, salgadinhos e refrigerantes e consegui permissão para que os presos ficassem no pátio da prisão.
Você, na sua precocidade, quis saber por que aqueles homens estavam presos e eu lhe disse que mereciam toda a nossa compaixão, mas eram ladrões e assassinos que a sociedade puniu, privando-os da liberdade. Expliquei-lhe que não nasceram maus, foi a própria sociedade que os induziu a isso. Ninguém nasce predestinado a ser bom ou ruim. Às vezes é a fome, um pedaço de pão que lhe é negado por essa mesma sociedade que se arvora em Juiz. Um dia você vai ler “Os Miseráveis” de Victor Hugo e vai compreender melhor o que estou tentando lhe dizer. Na verdade, somos todos responsáveis pelos “ João
Valjean “ que criamos, mas o que acontece é que cruzamos os braços e alegamos que não é da nossa conta.
O tempo passou, meu filho. Aos 16 anos, nada havia mudado. O nosso amor era o mesmo e você foi um adolescente igual a todos os outros, a diferença é que você tinha fome e sede de saber e com tão tenra idade publicou o seu primeiro livro de poemas e preparou mais dois para ser editado e eu vivia nas nuvens achando que o mundo era só meu. Diziam os gregos que quando se amava muito um ser humano, os deuses ciumentos arrebatavam o objeto desse amor e o levavam para o Olimpo. Pois é, isso também aconteceu comigo porque eu amei você acima da razão e, desde então o meu sonho tornou-se um
PESADELO
Estavas no caixão sereno e lindo
Aureolada a fronte, o olhar incerto
Estranho leito de flores coberto
Mais parecias um anjo dormindo.
Fiquei ali o teu sono a embalar
Naquele doce “dorme-dorme, filhinho”
Eu cantava pra você, Geraldinho
Uma doce canção de ninar.
De repente, a dor, a saudade, a revolta
Esqueci a canção de ninar
Cantei o amor, esqueci de rezar
E fiquei a esperar tua volta
E me lembrei do porquê da revolta
Da minha dor e também da saudade
É que estando na eternidade
Nem mesmo Deus pode me dar você de volta.
Guarabira, 25 de agosto de 2011
MARISA ALVERGA